Vencido meio ano de 2015 em que comemoramos o centenário maravilhoso do Grupo. Depois de almoçarmos no Natal e treinarmos em casa dos nossos amigos. De uma festa campera encimada com missa e novilhada tentadera. A corrida aniversária de 6 de Junho em Santarém em que nos fardámos e pegámos sem querer saber da idade e todos permanecemos unidos logo na apresentação de um belíssimo livro biográfico que nos honra e faz jus à nossa História, depois na Praça, de manhã e à tarde, nos petiscos e no jantar ceia baile dessa noite, quase manhã, com organizações perfeitas que só o amor extremo e o carinho permitiram. Em que também se despediram do nosso convívio símbolos maiores da amizade, verticalidade e senhorio que o foram António Paim dos Reis e Francisco Freire Gameiro… e do prematuro adeus do Francisco Seabra no pleno amanhecer da juventude e que só a Fé consegue decifrar.
Foi-se aproximando um dia que, sem deixar de pretender ser de enorme convívio, se sabia e sentia ser diferente, com um peso e responsabilidade maiores. O da noite de 23 de Julho, em que essa mesma comemoração teria lugar no Campo Pequeno, numa corrida com um cartel cuidado e único e em que Portugal aproveitava para, na sua capital, tributar e agradecer ao Grupo a forma como serviu desinteressadamente a Pátria e a Festa em todos estes anos. O cartel era de luxo, reunindo três das figuras máximas do actual panorama equestre mundial, com o Grupo a pegar naturalmente em solitário os seis toiros, de uma ganadaria também ela de nossos grandes amigos e antigos forcados e sabendo-se de antemão e havia meses que seria a corrida do ano, que esgotaria e em que toda a afición, a festiva e a mais exigente, não deixaria de estar presente.
Todos nós, que pertencemos, crescemos, servimos e nos formámos nesta “amizade trágica” que é a de ser forcado do Grupo de Forcados Amadores de Santarém, sabíamos que a hora seria de exigência máxima.
E foi-o.
Depois de entregues ao Grupo no início da corrida e na arena as Insígnias da Ordem do Mérito, atribuída pela Presidência da República, numa cerimónia plena de dignidade e em que o Diogo agradeceu com humildade e concisão o (justo) tributo que nos fizeram, ia começar a hora da verdade.
O curro de David Ribeiro Telles, todo ele da sua linha Murube, mostrou-se muito bem apresentado e muito pesado, na sua maioria muito acima dos 600 quilos, dando no seu conjunto um bom jogo e permitindo o brilho dos cavaleiros, chegando ao momento das pegas com uma frescura física notável.
Para o primeiro toiro, de quinhentos 568 quilos, o Diogo Sepúlveda assumiu desde logo pessoalmente a responsabilidade de o enfrentar. Depois do brinde de agradecimento a Valente de Oliveira, mandou colocar o toiro deixando-o próximo das tábuas frente aos curros. Citou-o “desde cá de trás” lenta e sobriamente e, adivinhando a prontidão rápida do mesmo, provocou-lhe a investida um pouco após os médios, carregando na justa medida e, mantendo-se num curtíssimo espaço de tempo imóvel e começando depois a recuar já com o toiro próximo, com temple e acompanhando a investida totalmente consentida deste, obrigou-o a humilhar com suavidade e fechou-se em seguida com perfeição e segurança, com uma primeira ajuda com o normal brilho e eficiência do Nélson Ramalho e o grupo todo ele coeso a submeter e imobilizar o toiro junto aos curros.
Uma pega tecnicamente perfeita, na linha coerente que nos habituou e depois do hino à arte de pegar toiros que já nos havia oferecido no passado dia 6 de Junho em Santarém. Quem viu não sabe contar…
Para o segundo toiro, de 582 quilos, saltou o João Grave, dedicando a sorte aos manos Francisco e Luís Gameiro tributando e comungando a saudade pela recente partida de seu pai, exemplo incomum de forcado e de homem, valente, próximo, íntegro... Após uma primeira tentativa em que chamou o toiro colocado frente aos curros, chamando de largo e citando pausadamente, por ter eventualmente carregado o toiro um tudo nada demais, recuou já tardiamente, pelo que o não recebeu no tempo certo, de que resultou um primeiro derrote forte sem estar ainda acoplado e lhe não permitiu já recuperar, terminando por sair antes de os restantes elementos do Grupo poderem ajudá-lo. Na segunda tentativa, após recuperação rápida e colocação do toiro no mesmo sítio, voltou a repetir o cite, quiçá ainda mais lento, pisando com a elegância de um diestro e, desta feita, porque perfeito no carregar, logrou que o toiro humilhasse submetido no momento da reunião à barbela. Bem ajudado pelo Quintela, o toiro acabou, sem derrotar muito mas com ímpeto, por se imobilizar com todas as ajudas em cacho rematado, fazendo esquecer integralmente o insucesso havido no primeiro intento.
Para a pega do terceiro toiro, de 626 quilos, foi encarregue o experiente Luís Sepúlveda que, após tê-la dedicado à Maria João Lopo de Carvalho, colocou o toiro tal como os demais em frente aos curros, protagonizando uma pega muito segura, num toiro que arrancou prontamente e em velocidade crescente, tendo-lhe encurtado os terrenos com um carregar no tempo certo e recuando por forma equilibrada e muito rápida, fechando-se de modo impecável à barbela, com ajudas totalmente eficazes e sem defeitos até às tábuas.
No quarto, com 658 quilos e algo fechado de córnea, o Diogo apostou na juventude, cometendo a sua execução ao Lourenço Ribeiro, que, após ter dedicado a sua faena ao lendário Nuno Megre, mostrou frieza e mestria, embarbelando-se num ápice num toiro que, mal se apercebeu da sua presença, arremeteu de rompante e com violência, não lhe permitindo recuar muito. Uma vez mais com os primeiro e segundos ajudas a não deixar passar nada, o toiro terminou totalmente submetido junto aos curros.
O quinto toiro, anunciado com 663 quilos, com uma córnea assimétrica e alto de agulha, nobre e revelando-se pronto nas investidas durante o decorrer da lide a cavalo, chegou ao termo desta fresco e descarado. Para a cara do mesmo, saltou o António Goes, sóbrio e de semblante sério. Após retribuir o brinde que os três cavaleiros haviam já oferecido ao Grupo, caminhou sereno para o centro da praça. O toiro, colocado próximo da trincheira, respondeu com uma investida inconvicta, de trote para galope curto e crescendo quando o António lhe bateu o pé já na viagem. Este, recuando equilibrado, não obstante o toiro ter ensarilhado e reunido a meia altura, logrou fechar-se com ele à córnea numa reunião violenta seguida de três derrotes brutais, cada um deles provocando verdadeiros pinos, cujo ímpeto o forcado sustinha unicamente com as mãos cravadas na base dos cornos e de onde não saíram nunca, voltando a recompor-se repetidamente na cara do toiro de cada vez que regressava uma e outra vez lá das alturas. A pega consumou-se após um quarto derrote, quando o Grupo conseguiu finalmente ajudar: porque o toiro ao derrotar o fazia em rotação, não permitia que os ajudas se recompusessem. O público, na praça, duvidava do que acabava de testemunhar. E rompeu então numa ovação genuína, em uníssono e sem fim, com palmas de fazer fumo. Todos olhávamos para o companheiro do lado como que a questioná-lo se tinha visto o mesmo. Foi o delírio nas bancadas, num daqueles singulares momentos em que todos nos sentimos iguais porque comungando uma alegria que surge assim, inesperada, fascinante e plena, e felizes com a fortuna de o podermos conjuntamente partilhar. Afinal, a pega do António e do Grupo era de todos nós que ali estávamos e vivíamos juntos esses instantes únicos. E, por isso, pareceu normal que o António, com uma atitude de humildade genuína, se visse obrigado pelo público a repetir por três vezes (eu disse três!) a volta à praça, sempre com ida aos médios.
Havia, porém, que descer de novo à realidade e faltava o último toiro para rematar em beleza uma actuação que já se sentia conseguida. E o peso desse momento, de garantir o fecho de uma campanha triunfal, num sexto e último toiro, também de seiscentos e muitos quilos, recaiu naturalmente sobre o João Brito, com a excelência com que nos vem habituando desde o primeiro dia que envergou a jaqueta escalabitana. Num toiro bravo e que também chegou ao fim da lide a cavalo “a pedir meças”, o João, depois de agradecer ao público todo o carinho com que nos havia obsequiado nessa noite, mas também nos cem anos anteriores, chamou de largo o toiro que, em reposta ao cite, arrancou das tábuas e, na viagem, quedou-se nos tércios. Teve aquele que lhe encher a cara, falando com ele, até que, carregando-o de novo, aquele acometeu com fereza numa reunião dura e em que os pés do forcado voltavam a tocar o céu, descendo para se fechar de novo, com o Grupo uma vez mais a ajudar coeso e sem mácula. Deu volta apoteótica com o cavaleiro João Ribeiro Telles e o ganadeiro seu pai e, depois, após chamada unânime, com o Grupo.
Uma festa que terminou com o Grupo a sair da Praça pela Porta Grande numa noite inolvidável com um público que fez “silêncios de Sevilha” em cada cite do forcado, que percebeu a seriedade da corrida e agradeceu a entrega gratuita, a qualidade da actuação daquele, o perfume que ficava. E que, por isso, não arredou pé sem dele se despedir num aplauso que parecia não ter fim… e foi com justificadas ganas que terminou cantando em coro A Portuguesa.
E continuámos em festa até altas horas e sempre ao rubro, numa alegria que queríamos não terminasse. O dia 1 dos próximos 100 anos!
Venha vinho!
Pedro Afra Rosa (Balé) Foi este o magnífico ambiente vivido nesta inesquecível noite... (fotografia de Maria João Mil-Homens) |